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Educação Para Preservar: Prisioneiros Cantores

No mês de junho, também conhecido como período junino por causa das festividades de São João e São Pedro, especialmente no Nordeste do Brasil, celebram-se tradições marcadas por danças de forró e o consumo de comidas típicas feitas com milho. Um dos grandes ícones da música brasileira que ganha ainda mais destaque nesse período é Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Com suas músicas, ele retratava o modo de vida, os costumes e as emoções do povo do sertão.

Em uma de suas canções mais emblemáticas, Assum Preto (Crotophaga ani), Luiz Gonzaga descreve, com sensibilidade poética, um cenário marcado pelo sol de abril e uma mata exuberante. A canção constrói um contraste entre a beleza da natureza e a dor profunda — tanto do eu lírico, que perdeu seu amor, quanto do pássaro, que teve os olhos furados para, supostamente, cantar melhor.

Neste texto, abordaremos um costume bastante comum, não apenas no Brasil: o hábito de criar pássaros em gaiolas. Uma prática que, como denuncia a música do velho Luiz em um de seus versos mais marcantes, pode nascer da ignorância ou da crueldade:

“Tarvez por ignorança
ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió.”

Origens Históricas da Criação de Aves em Gaiolas

A prática de criar aves em gaiolas remonta a milhares de anos. Registros históricos indicam que já no Antigo Egito, na China e em civilizações do Oriente Médio, as aves eram mantidas em cativeiro — tanto por sua beleza quanto por seus cantos. Com o tempo, esse costume se espalhou por diferentes partes do mundo, sempre com finalidades diversas:

Estética e Prestígio Social:
Na Europa renascentista, por exemplo, manter aves exóticas em gaiolas era comum entre a nobreza e a elite, como forma de ostentação. O canto melodioso de certas espécies, como o rouxinol e o canário, era especialmente valorizado.

Entretenimento e Competição:
Já entre os séculos XVIII e XIX, principalmente em países europeus, começou a surgir uma cultura de competições de canto de aves, especialmente entre canários e tentilhões. Essa prática foi trazida para o Brasil durante o período colonial.

Tradição Popular no Brasil:
No Brasil, a criação de aves nativas (como o curió, o coleiro, o trinca-ferro e o sabiá) em gaiolas se popularizou principalmente nas zonas rurais e urbanas do interior. Além do apreço pelo canto, as aves passaram a ser associadas a momentos de lazer, identidade regional e até status social.

Aspectos Culturais e Afetivos:
Para muitos, criar uma ave era (e ainda é) parte de um modo de vida — especialmente em regiões como o Nordeste, onde há uma forte ligação entre o canto dos pássaros e o cotidiano.

Impactos Ambientais

Criar pássaros em gaiolas pode parecer, à primeira vista, uma prática inofensiva ou até culturalmente valorizada. No entanto, ela traz diversos impactos ambientais negativos, especialmente quando feita de forma ilegal ou sem critérios de bem-estar animal. Abaixo, listo os principais impactos:

 Redução das populações silvestres

A captura de aves na natureza para criação doméstica é uma das maiores causas de declínio populacional de espécies nativas, como o curió, o trinca-ferro e o papagaio-verdadeiro. Mesmo quando feita em pequena escala, a retirada constante de indivíduos compromete a reprodução natural dessas espécies.

Desequilíbrio ecológico

As aves cumprem funções ecológicas importantes:

  • Polinização
  • Dispersão de sementes
  • Controle de insetos

Quando são removidas de seus habitats naturais, há perda desses serviços ecológicos, o que pode causar desequilíbrios na cadeia alimentar e afetar a regeneração de florestas e matas.

 Incentivo ao tráfico de animais silvestres

A demanda por aves de canto alimenta o tráfico de fauna, uma atividade ilegal e lucrativa que movimenta bilhões de reais por ano. Estima-se que apenas 1 em cada 10 animais capturados ilegalmente sobrevive até o destino final, devido às condições precárias de transporte e manejo.

Perda de diversidade genética

A criação em cativeiro, quando não regulamentada, favorece o cruzamento entre indivíduos geneticamente semelhantes (endogamia), o que reduz a variabilidade genética e torna as espécies mais vulneráveis a doenças e mudanças ambientais.

Pressão sobre órgãos de fiscalização

A criação ilegal de aves sobrecarrega o trabalho de órgãos ambientais como o IBAMA e as polícias ambientais, que precisam atuar constantemente para combater o tráfico, realizar resgates e reintroduções, além de cuidar de milhares de animais apreendidos.

Legalidade e bem-estar animal

Mesmo quando legalizada, a criação de aves exige:

  • Registro no IBAMA ou órgão estadual competente
  • Condições adequadas de alimentação, espaço e estímulo comportamental

Sem isso, as aves sofrem com estresse, tédio, automutilação e outros problemas graves de saúde.

Liberdade aos cantores

Sim, aves livres são extremamente importantes — não apenas do ponto de vista ambiental, mas também cultural e ecológico. Abaixo, explico por que a liberdade das aves é fundamental:

Papel ecológico essencial

Aves livres cumprem funções indispensáveis nos ecossistemas:

  • Polinização de plantas (beija-flores, por exemplo)
  • Dispersão de sementes (como tucanos e sabiás)
  • Controle de pragas e insetos (andorinhas, corujas, etc.)
  • Limpeza de carcaças (urubus, que evitam a propagação de doenças)

Preservação da biodiversidade

A liberdade das aves é vital para a manutenção da biodiversidade. Elas ajudam a regenerar ambientes naturais e garantem a sobrevivência de inúmeras espécies vegetais que dependem delas.

Valor cultural e simbólico

O canto das aves livres é parte do cotidiano, da música popular (como nas canções de Luiz Gonzaga), da literatura e da vida no campo. Ver e ouvir aves livres enriquece a experiência humana e inspira arte, espiritualidade e respeito pela natureza.

Cativeiro gera sofrimento

Pássaros criados em gaiolas geralmente:

  • Não conseguem voar (atividade natural e vital para eles)
  • Sofrem de estresse e tédio
  • Perdem comportamentos naturais (como cortejo, ninho, migração)
  • Desenvolvem doenças físicas e mentais

Educação ambiental e turismo

Aves livres estimulam o turismo ecológico (como a observação de aves) e fortalecem a educação ambiental, promovendo o respeito à vida silvestre e à conservação dos habitats.

Conclusão

Infelizmente, a prática de furar os olhos do “assum preto” (ou anum-preto, um tipo de pássaro conhecido por seu canto), embora extremamente cruel e ilegal, ainda é relatada em algumas regiões rurais do Brasil, de forma muito rara e isolada.

Essa prática vem de uma crença popular equivocada de que, ao perder a visão, o pássaro cantaria mais bonito, já que estaria mais sensível ao som por não se distrair com o ambiente. Essa ideia é totalmente infundada do ponto de vista científico e representa uma grave violação dos direitos dos animais.

Por que isso é errado:

Causa sofrimento extremo ao animal – dor física, estresse e impossibilidade de se alimentar ou se mover adequadamente.

É crime ambiental – segundo a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), maltratar ou mutilar animais silvestres ou domésticos é punível com detenção e multa.

Não melhora o canto da ave – isso é um mito. O canto das aves depende de genética, saúde e estímulo ambiental, não de mutilações.

Situação atual:

  • A prática é condenada por criadores conscientes, ambientalistas e órgãos como o IBAMA.
  • Está quase extinta, mas pode ainda acontecer de forma clandestina em áreas com baixa fiscalização e pouca informação.
  • Denúncias podem (e devem) ser feitas ao IBAMA, polícia ambiental ou secretarias estaduais de meio ambiente.

Educação e conscientização são o caminho

Ouvir, ao acordar, o canto de um pássaro livre é uma dádiva. Nem todos têm esse privilégio. O canto das aves é símbolo de liberdade, de bem-estar e de harmonia com a vida. Apreciar o som do Assum Preto voando solto, com os olhos intactos, é enxergar o amor pela natureza traduzido em notas que vêm da alma do mundo.

Como disse o saudoso Luiz Gonzaga, em sua canção:

Assum Preto, o meu cantrar

É tão triste como o teu

Também roubaro o meu amor

Que era aluz, ai, dos óios meus

É com tristeza que vemos práticas cruéis ainda persistirem. Criar um pássaro em uma gaiola é prender para si o que a natureza oferece a todos. É um gesto egoísta, uma demonstração de ignorância sobre o que realmente significa liberdade — em sua forma mais simples e pura.

Para que essa tristeza não cresça, a educação ambiental e a conscientização devem ser constantes, como o canto matinal de um pássaro na janela, que vem nos lembrar: a liberdade é bela, e uma gaiola, para quem só quer cantar, pode ser um instrumento de dor e injustiça.